sábado, 12 de setembro de 2015

3 DE NOVEMBRO DE 2015



GINGER E FRED (1986)


 “Ginger e Fred” estava destinado inicialmente a ser um episódio de uma série televisiva de que fariam parte, entre outros realizadores, Michelangelo Antonioni e Franco Zeffirelli. O projecto televisivo gorou-se, mas Fellini, mercê de contactos internacionais, conseguiu levar o seu filme avante, e o resultado, na sua simplicidade e linearidade de processos, parece-nos ser uma obra admirável, de grande sentido crítico e poético, retrato impiedoso do nosso tempo, dominado pela televisão, pelo terrorismo internacional, pela instabilidade (de que é exemplo, esse “monstruoso” programa de televisão, onde se exploram - e se especula - velhas glórias do passado, agora reduzidas a ruínas). Mas o olhar de Fellini transcende o grotesco, a sua ternura invade tudo e todos, localizando-se preferencialmente nessa galeria de vítimas da engrenagem televisiva, actores e convidados de um “show” onde os “freaks” não se encontram afinal onde a uma primeira vista parecem estar, mas, muito pelo contrário, por detrás das câmaras, movimentando os cordelinhos do desencanto e da humilhação. Em 1986, Fellini intuía no que se poderia transformar a televisão, mas não conseguia, apesar de tudo, ir tão longe na sua premonição quanto a própria televisão o faria na realidade, anos mais tarde. Na época da estreia, escrevi sobre o filme que, “muito embora algumas situações excessivas (e que se sentem sobretudo na primeira parte)”, gostava muito da obra. Inocente que eu era, quando referia os excessos dessa televisão medonha e omnipresente. Afinal Fellini pecava, se pecava, por defeito, não por excesso. 


Amelia Bonetti (Giulietta Masina) e Pippo Botticella (Marcello Mastroianni) constituíram uma parelha de bailarinos italianos que tiveram alguma glória nos anos 40, na sua juventude, apresentando-se a imitar Ginger Rogers e Fred Astaire, num número de certo sucesso chamado precisamente "Ginger e Fred". Trinta anos depois de se terem separado, regressam, por entre dúvidas e angústias, para recordarem esses tempos frente aos telespectadores, depois de uma estação de televisão de Roma os convidar para voltarem a apresentar o seu número num programa de fim de ano. Entre as reminiscências do passado e os problemas das suas vidas particulares, a dupla ainda tenta apresentar o seu número como nos velhos tempos, mas vêem esta intenção frustrada ao confrontarem-se com o universo frio e mecânico dos bastidores da TV. Tudo mudou, nada é como dantes. Isso percebe Amélia logo que é recebida na estação de caminho-de-ferro por uma assistente de produção que recolhe aqui e ali os corpos dos participantes do grande show de Natal para os transportar para um hotel de terceira, onde irão esperar pelo dia e a hora de prestarem provas, de tentarem recuperar o tempo perdido ou de assegurar a raridade do seu projecto, quer sejam velhos bailarinos, músicos anões, transexuais, gloriosos almirantes, imitadores de profissão. Para o pessoal da televisão, bem assim como para todos os que fazem o programa, cada um desses destroços da vida nada mais é do que uma nova concepção de carne para canhão, palhaços baratos para ocuparem tempo e ganhar audiência com exotismos de feira. Um novo circo dos horrores, uma nova parada de “freaks” se anuncia. Cada um deles irá apresentar o seu número e regressar a suas casas mais despojados de si do que nunca, depois dos seus 5 minutos de efémera glória num estúdio de televisão. No caso de “Ginger e Fred”, a falta de luz durante a exibição permite-lhes um momento de hesitação, com Pippo Botticella a propor uma retirada estratégica e Amelia Bonetti a procurar levar o revivalismo até ao fim. O que acontece. Será na estação de caminhos-de-ferro que ambos de despedem, provavelmente para sempre. Definitivamente para sempre de “Ginger e Fred”.
Dir-se-ia que Fellini afinal, para criticar a televisão (sobretudo a televisão privada, que já por essa altura enxameava a Itália, alargando depois a sua influência a toda a Europa e todo o mundo), explora, ele também, o mesmo universo. Mas a verdade é que, para explorados e ofendidos, só existe no olhar do cineasta um profundo calor, uma enorme ternura, a compreensão, o amor, enquanto as câmaras de TV avançam para as suas personagens como ameaçadoras silhuetas de tanques. Fellini reencontra aqui o seu universo mais querido e mais pessoal: o mundo do espectáculo, com as suas luzes e as suas sombras, a memória, as vítimas indefesas de uma sociedade hostil e arrogante para com os mais fracos. Estas são as novas “Luci dei Varietá”.

GINGER E FRED
Título original: Ginger & Fred
Realização: Federico Fellini (Itália, França, RFA, 1986); Argumento: Federico Fellini, Tonino Guerra, Tullio Pinelli; Música: José Padilla, Nicola Piovani, e ainda Irving Berlin (canção "Let's Face the Music and Dance"); Fotografia (cor): Tonino Delli Colli, Ennio Guarnieri; Montagem: Nino Baragli, Ugo De Rossi, Ruggero Mastroianni; Casting: Gianni Arduini; Design de produção: Dante Ferretti; Direcção artística: Nazzareno Piana; Decoração: Gianfranco Fumagalli, Angelo Santucci; Guarda-roupa:  Danilo Donati; Maquilhagem: Adriano Carboni, Rino Carboni, Adonella De Rossi, Massimo De Rossi, Renato Francola, Alfredo Tiberi; Direcção de produção: Franco Coduti, Raymond Leplont, Tullio Lullo, Roberto Mannoni, Franco Marino, Walter Massi, Fernando Rossi, Viero Spadoni; Assistentes de realização: Gianni Arduini, Daniela Barbiani, Eugenio Cappuccio; Departamento de Arte: Giuliano Geleng, Rinaldo Geleng, Luigi Sergianni, Italo Tomassi; Som: Fabio Ancillai, Fausto Ancillai, Mark Headley, Sergio Marcotulli, Tommaso Quattrini; Efeitos especiais: Adriano Pischiutta; Produção: Heinz Bibo, Alberto Grimaldi; Intérpretes: Giulietta Masina (Amelia Bonetti - Ginger); Marcello Mastroianni (Pippo Botticella - Fred), Franco Fabrizi (Apresentador de Show), Frederick Ledebur (Almirante Aulenti), Augusto Poderosi (Travesti), Martin Maria Blau (Assistente de realizador), Jacques Henri Lartigue (Padre Gerolamo), Totò Mignone (Totò), Ezio Marano (Intelectual), Antoine Saint-John, Friedrich von Thun, Antonio Iuorio, Barbara Scoppa, Elisabetta Flumeri, Salvatore Billa, Ginestra Spinola, Stefania Marini, Francesco Casale, Gianfranco Alpestre, Filippo Ascione, Elena Cantarone, Cosima Chiusoli, Claudio Ciocca, Sergio Ciulli, Roberto De Sandro, Vittorio De Bisogno, Fabrizio Fontana, Laurentina Guidotti, Giorgio Iovine, Danika La Loggia, Isabelle Therese La Porte, Luigi Leoni, Luciano Lombardo, Mariele Loreley, Elena Magoia, Franco Marino, Mauro Misul, Jurgen Morhofer, Pippo Negri, Antonietta Patriarca, Nando Pucci Negri, Luigi Rossi, Franco Trevisi, Patti Vailati, Narciso Vicario, Hermann Weisskopf, Daniele Aldrovandi, Ennio Antonelli, Claudio Botosso, Eolo Capritti, Mario Conocchia, Gabriella Di Luzio, Barbara Montanari, Federica Paccosi, Alessandro Partexano, Leonardo Petrillo, Moana Pozzi, etc. Duração: 125 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo Audiovisuais/VHS; Classificação etária: M/ 12 anos.


GIULIETTA MASINA (1920-1994)
Giulia Anna Masina nasceu a 22 de Fevereiro de 1920, em San Giorgio di Piano, na província de Bolonha, Itália, e viria a falecer em Roma, a 23 de Março de 1994, com 74 anos. Filha de Gaetano Masina, violinista e professor de música, e de Angela Flavia Pasqualin, professora, passou boa parte de sua adolescência em Roma com uma tia viúva. Estudou Letras e Filosofia na Universidade de Roma, mas durante os estudos a sua paixão era já o teatro e a arte de representar. Entre 1941 e 1942, participou em vários espetáculos de prosa, dança e música no teatro universitário. Trabalha na rádio, onde encontra Fellini, que escreve os textos. Em 30 de Outubro de 1943, casa-se com Federico Fellini, com quem trabalha intensamente durante alguns anos. No cinema, estreia-se em 1946 com um pequeno papel na obra de Roberto Rossellini “Paisà”. Dois anos mais tarde, obtém o primeiro papel importante no filme “Senza pietà”, de Alberto Lattuada. Mas alcança o sucesso internacional com a figura de Gelsomina, em “La Strada” (1954), e depois com o de Cabiria, em “Le notti di Cabiria” (1957), este último que lhe traria o prémio de Melhor Actriz no Festival de Cannes. Ambos dirigidos por Fellini que considerava Giulietta Masina a sua “musa” e a sua “inspiração”. Criou personagens entre o drama e a comédia, na linha do herói de Chaplin, que a tornaram incomparável.
Fellini morreu a 31 de Outubro de 1993, com 73anos, Giulietta Masina sobrevive-lhe apenas alguns meses. Morre de cancro de pulmão, a 23 de Março de 1994, com 74 anos. No funeral, o trompetista Mauro Maur tocou, a seu pedido, o tema de “La Strada”, de Nino Rota. Ela e Fellini tiveram momentos bons e maus, mas foi uma história de amor imortal.

Filmografia:

Como actriz: 1946: Paisà (Libertação) de Roberto Rossellini; 1948: Senza pietà (Sem Piedade) de Alberto Lattuada; 1950: Luci del varietà, de Federico Fellini; 1951: Sette ore di guai (Sete Horas de Sarilhos), de Vittorio Metz e Marcello Marchesia; Cameriera bella presenza offresi... (Criada, Oferece-se...), de Giorgio Pàstina; Persiane chiuse (Persianas Corridas), de Luigi Comencini; 1952: Wanda la peccatrice (Wanda, a Pecadora), de Duilio Coletti; Il romanzo della mia vita, de Lionello De Felice; Lo sceicco bianco (O Sheik Branco), de Federico Fellini; Europe ‘51 (Europa 51), de Roberto Rossellini; 1953: Ai margini della metropoli (À Margem da Metrópole) de Carlo Lizzani; Via Padova 46 (A Minha Aventura de Amor), de Giorgio Bianchi; 1954: Donne proibite (Vidas Proibidas), de Giuseppe Amato; Cento anni d'amore (Cem Anos de Amor), filme em episódios de Lionello de Felice, episódio “Purification”; La Strada (A Estrada), de Federico Fellini; 1955: Buonanotte... avvocato! (Não Venhas Tarde), de Giorgio Bianchi; 1955: Il bidone (O Conto do Vigário), de Federico Fellini; 1957: Le notti di Cabiria (As Noites de Cabíria), de Federico Fellini; 1958: Fortunella, de Eduardo De Filippo; 1958: Nella città dell'inferno (As Grades do Inferno) de Renato Castellani;1959: Jons und Erdme, de Victor Vicas; 1960: Das Kunstseidene Mädchen, de Julien Duvivier;1965: Giulietta degli spiriti (Julieta dos Espíritos), de Federico Fellini; 1966: Scusi, lei è favorevole o contrario? (Como casar a nossa filha?), de Alberto Sordi; 1967: Non stuzzicate la zanzara (Não Provoquem a Rita), de Lina Wertmüller; 1969: The Madwoman of Chaillot (A louca de Chaillot), de Bryan Forbes; 1973: Eleonora (TV); 1976: Camilla (TV); 1985: Ginger e Fred (Ginger e Fred), de Federico Fellini; 1985: Sogni e bisogni, de Sergio Citti (TV); Perinbaba, de Juraj Jakubisko; 1986: Frau Holle, de Juraj Jakubisko; 1991: Aujourd'hui peut-être..., de Jean-Louis Bertuccelli.

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