A BOCETA
DE PANDORA (1929)
Frank Wedekind, célebre dramaturgo alemão, escreveu, entre
outras, duas peças que servem de base ao filme de Pabst, “Erdgeist” (O Espírito
da Terra, 1895) e “Die Büchse der Pandora” (A Boceta de Pandora, 1902). Georg
Wilhelm Pabst, Joseph Fleisler e Ladislaus Vajda adaptam os
dramas a cinema, com resultado excepcional. Absolutamente
inusitado para a época, social e sexualmente revolucionário no seu tempo e
ainda hoje perturbante. Um dos mais fulgurantes e provocadores retratos de
mulher de toda a história do cinema. Louise Brooks era até então uma pouco
conhecida e apreciada actriz norte-americana que aceitou viajar até à Alemanha
de finais dos loucos anos 20 para protagonizar “Die Büchse der Pandora”. Depois
desta experiência tornou-se num mito, numa personalidade para sempre
inigualável na História do Cinema Mundial.
Curioso será referir que Frank Wedekind, o autor das peças
de teatro, deverá ter-se inspirado na vida de Lou Andréas-Salomé, escritora
nascida russa, que viveu sobretudo na Alemanha, mas era um boémia sedutora que
foi dizimando corações ao longo da sua existência, desde Sigmund Freud,
Friedrich Nietzsche, Rainer Maria Rilke, Paul Rée, até ao próprio Wedekind,
entre muitos outros, desconhecendo-se, porém, se em muitas dessas relações
amorosas imperou o platonismo ou a satisfação sexual. Mas a sua história e a
natureza dos seus escritos, entre a ficção, o ensaio e a poesia, todos de
qualidade e originalidade indiscutíveis, fizeram dela uma bandeira do feminismo
e da “humanização da mulher” (título de uma das suas obras), da libertação da mulher dos preconceitos e
formalismos habituais na época. Parece que o seu encontro com Frank Wedekind
foi de molde a este a recordar como uma visão demoníaca da mulher, de tal forma
que a identificou com a caixa de Pandora que, uma vez aberta, liberta todos os
vícios e pecados do mundo.
Lou Andréas-Salomé era uma mulher livre, sensual,
provocadora, possivelmente destrutiva para muitos que dela se aproximaram, e
será este o modelo de Lulu, que Georg Willem Pabst imaginou igualmente para
protagonista do seu filme. Mas quem surgiu como primeira escolha para
interpretar este papel foi Marlène Dietrich (que curiosamente, no ano seguinte,
seria “O Anjo Azul” num filme de Sternberg que apresenta muitas semelhanças com
“A Boceta de Pandora”). Marlène, porém, levantou algumas objecções e Pabst
decidiu-se por uma jovem norte-americana, não muito conhecida, que ele
“descobrira” ao assistir a um filme de Howard Hawks, “A Girl in Every Port”, onde
ela tinha um papel secundário ainda, mas certamente muito persuasivo.
Em finais da década de 20, Georg Willem Pabst era já um
cineasta conceituado, autor de obras como “Rua Sem Sol” (que lança Greta Garbo,
ao lado de Asta Nielson), “O Estranho Caso do Professor Matias”, “Uma Mulher na
Noite” ou “O Amor de Joana Ney”. O seu cinema interliga habilmente a herança
expressionista, com o realismo do Kammerspielfilm, o que é bem visível em “Die
Büchse der Pandora”, onde o intimismo realista da primeira hora, passada nos
ambientes da alta burguesia alemã, contrasta com os resquícios de
expressionismo das cenas no interior do barco francês, onde são permitidos
todos os vícios, e sobretudo com toda a sequência final passada nas nebulosas
ruas e vielas londrinas.
Lulu (Louise Brooks) encontra-se, no início de “Die Büchse
der Pandora”, com o seu amante, Dr.
Peter Schön (Fritz Kortner), um magnate, que anuncia que a vai deixar porque
tem marcado casamento com a filha de um ministro. Lulu não se deixa intimidar:
“Se te queres libertar de mim, tens de me matar”. Entretanto, escondido no
apartamento de Lulu, encontra-se Schigolch (Carl Goetz), que ela apresenta
nesta circunstância como seu “velho amigo" (será depois apresentado como
“pai”, “mecenas” ou “patrão”, transformando-se numa personagem híbrida e
misteriosa que tão depressa é confidente ou apoio, como instigador de
prostituição ou batoteiro ao jogo).
Peter Schön tem um filho, Alwa (Francis Lederer), que se
prepara para montar um espectáculo teatral, entre a revista e o music-hall, e
que contrata Lulu, por quem se encontra igualmente apaixonado. A relação de
Schön com Lulu é descoberta pela noiva, que anula o casamento, acabando Schön
por casar com Lulu. Mas logo no dia do enlace, Lulu desaparece de forma misteriosa
da festa da boda, sendo encontrada por Schön no quarto com Schigolch e Rodrigo,
um trapezista (Krafft-Raschig). Uma troca de acusações mais violenta, um
revólver, um disparo e Schön cai fulminado. No julgamento que se segue, o juiz
culpa Lulu, considera que ela abriu a “boceta de Pandora” que liberta todos os
males e condena-a a cinco anos de prisão. Um incêndio no tribunal acaba por
favorecer a fuga da ré, que vamos descobrir, tempos depois, na companhia de
Alwa, Schigolch e Rodrigo, a bordo de um
iate francês, por entre o fumo do tabaco, os vapores do álcool e as cartas de
jogar que arruínam progressivamente Alwa e comparsas. Entre estes, a condessa
Anna Geschwitz (Alice Roberts), uma lésbica assumida, que ama Lulu e por quem
aceita ser seduzida por Rodrigo, como forma de pagar dívidas antigas. Uma rusga
da polícia leva à debandada, mas o corpo assassinado de Rodrigo permanece.
Lulu, Alwa e Schigolch surgem agora em Londres, nas vielas
mais populares, por entre o nevoeiro que traz consigo Jack, o estripador
(Gustav Diessl). E a morte. Alwa é apenas uma silhueta na noite.
Lulu mulher diabólica? De certa forma é ela que abre a caixa
donde se soltam os pecados e os vícios. Mas Lulu é igualmente o rosto de uma
certa inocência, a liberdade de um comportamento que, dir-se-ia, desconhece a
diferença entre o Bem e o Mal, que se move pelo prazer do momento, que ignora
moral e regras de conduta.
O filme é uma descida aos infernos, uma viagem pelo interior
da noite, passando por uma via sacra de tormentos e vícios. Terá sido a
primeira vez que o cinema apresentou a figura de uma lésbica, sem subterfúgios.
Cremos igualmente que raras vezes o cinema terá ostentado um tal catálogo de
licenciosidades e pecados, crimes e vícios. Schön, Alwa, Schigolch, Rodrigo e
Anna Geschwitz, através dos seus contactos com Lulu, percorrem um caminho de
perdição que oferece uma panorâmica implacável da decadente sociedade alemã de
finais dos anos 20, afinal a comunidade que se aprestava a incentivar ou
aceitar a ascensão de Hitler e do nacional-socialismo ao poder. Este era o “ovo
da serpente” que se preparava para gerar o monstro.
O filme é admirável na construção de ambientes e
personagens, com sequências absolutamente inesquecíveis, desde a cena inicial entre Lulu e Schon, passando pelo
casamento de ambos, a sugestão da morte do magnate, o julgamento de Lulu, as
posteriores imagens de jogo, ou o encontro entre Lulu e Jack, o estripador,
onde de novo a utilização da elipse é brilhantemente utilizada por Pabst. A fotografia de Günther Krampf, nas suas
diversas modelações, e a direcção artística de Andrej Andrejew e Gottlieb
Hesch, na criação dos cenários, são elementos vitais para a criação desta
obra-prima da cinematografia germânica.
A BOCETA DE PANDORA
Título original: Die Büchse der
Pandora
Realização: Georg Wilhelm Pabst (Alemanha,
1929); Argumento: Ladislaus Vajda, Joseph Fleisler, Georg Wilhelm Pabst,
segundo peças de teatro de Frank Wedekind ("Erdgeist" e "Die
Büchse der Pandora"); Produção: Heinz Landsmann, Seymour Nebenzal; Música:
Stuart Oderman (versão 1986), Peer Raben (versão 1997), William P. Perry;
Fotografia (p/b): Günther Krampf; Montagem: Joseph Fleisler; Direcção
artística: Andrej Andrejew, Gottlieb Hesch, Ernö Metzner; Guarda-roupa: Gottlieb Hesch; Direcção de Produção: Georg
C. Horetsky; Assistentes de realização: Marc Sorkin, Paul Falkenberg;
Departamento de arte: Marcel Tuszkay; Efeitos visuais: Andrei Dimitriu, Tobias
Wiedmer (restauro); Companhia de
produção: Nero-Film AG; Intérpretes:
Louise Brooks (Lulu), Fritz Kortner (Dr. Ludwig Schön), Francis Lederer (Alwa
Schön), Carl Goetz (Schigolch), Krafft-Raschig (Rodrigo Quast), Alice Roberts
Condessa Anna Geschwitz), Daisy D'Ora
(Charlotte Marie Adelaide), Gustav Diessl (Jack, the Ripper), Michael
von Newlinsky, Sig Arno, etc. Duração:
131 minutos; Distribuição em Portugal: Divisa Home Video (DVD); Cópia DVD:
Second Sight Films (versão alemã, com legendas em inglês); Classificação
etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 7 de Abril de 1930.
LOUISE BROOKS (1906-1985)
Em
1955, aquando da exposição “60 Anos de Cinema” realizada no Museu de Arte
Moderna, em Paris, na frontaria do prédio, via-se um cartaz de Louise Brooks, o que suscitou alguma
perplexidade nalguma imprensa. O director da Cinematèque Française, Henri
Langlois, personalidade de enorme prestígio no meio, e organizador da exposição
foi questionado: Porquê Louise Brooks para figurar como símbolo, e não, por
exemplo, Greta Garbo ou Marlene Dietrich, muito mais populares? Henri Langlois
limitou-se a dizer: "Não existe Garbo. Não existe Dietrich. Existe apenas
Louise Brooks".
Mary
Louise Brooks nasceu a 14 de Novembro de 1906, em Cherryvale, Kansas, EUA, e
veio a falecer a 8 de Agosto de 1985, em Rochester, Nova Iorque, EUA, vítima de
ataque cardíaco. Filha de Leonard Porter Brooks, advogado, e de Myra Rude, aos
quatro anos já actuava no palco de sua cidade. Os pais iniciaram-na no gosto
pela música, a literatura e a arte, mas mostraram-se bastante ausentes. Consta
que terá sido abusada por um vizinho quando tinha cinco anos. Muito jovem terá
sido atraída para a dança, aparecendo nos Denishawn Dancers, depois nos George
White's Scandals finalmente no Ziegfeld Follies, onde atinge honras de primeira
figura, mas seria no cinema que a sua personalidade e arte explodiriam. Aos 15
ou 16 anos saiu de casa. Em 1925, aparece em 1925 “The Street of Forgotten Men”
(Vidas Perdidas), de Herbert Brenon, não surgindo sequer creditada a sua
colaboração. Seguem-se um conjunto de filmes sem grande significado, até que, em
1929, um dos mais importantes cineastas alemães, Georg Wilhelm Pabst, a convida
a interpretar a personagem de Lulu, em “A Boceta de Pandora”, filme e
personagem que ficarão para sempre associados a si, criando-lhe uma reputação
internacional invulgar. O filme não foi unanimemente acolhido na época,
suscitou violentas críticas, sobretudo em função dos ambientes viciosos, de
grande decadência moral, que ostentava, mas lentamente criou a lendária aureola
de um cult movie.
Curiosamente,
não se sentia atraída por Hollywood e pela sua vida superficial e mundana.
Mulher de uma beleza invulgar, com um corte de cabelo curto e liso, de franja,
que se tornaria moda nesse tempo (por cá tivemos a nossa Beatriz Costa a
importar o conceito), Louise Brooks tornou-se sobretudo notada pela sua
rebeldia e provocação, impondo-se contra a submissão dos actores aos grandes
produtores e estúdios, discutindo com realizadores, desafiando preconceitos e
convenções, mantendo uma vida amorosa tumultuosa, onde os “casos” se sucediam (um
dos mais versados foi com Charlie Chaplin). A sua passagem pelos estúdios
alemães, a convide de Pabst, marca o apogeu da sua carreira. Não foi muito
feliz depois do aparecimento do sonoro, manteve-se activa até 1938 (o seu
último trabalho foi “Overland Stage Raiders”, de George Sherman), após o que se
retirou.
Consta
que uma das razões para o seu apagamento terá sido o facto de se ter recusado a
dobrar-se a si própria no filme “Canary Murder Case”, produzido sem som e
lançado como sonoro. Os produtores, furiosos com a recusa, espalharam o boato
de que ela tinha uma voz horrível e por isso não tinha querido dobrar o filme.
Foi o bastante para ser abandonada pelos estúdios. Afastada do cinema, ganha a
vida de várias formas, escreve crónicas, rubricas na rádio, é vendedora num
loja, a Sak's Fifth Avenue, e, em 1948, começa a escrever sua biografia,“Naked
On My Goat”, que destrói uma vez terminada. Justifica o acto: “Ao escrever a
história de uma vida, acho que o leitor não pode entender a personalidade e as
acções de uma pessoa ao menos que sejam explicitados os amores, os ódios, e os
conflitos sexuais dessa pessoa. Não estou disposta a escrever a verdade sexual
que tornaria minha vida digna de ser lida". Mas continua a escrever e mais
tarde assina um best seller: “Lulu in Hollywood”. No final da vida sofria de
artrite e faleceu no dia 8 de Agosto de 1985, aos 78 anos de idade, em Nova
Iorque. Foi encontrada já sem vida no seu apartamento, vítima de ataque
cardíaco, e os seus restos mortais foram depositados em Rochester.
Casada
com o realizador A. Edward Sutherland (1926 - 1928), e posteriormente com
Deering Davis (1933 - 1938), divorciando-se de ambos. Foi amante do fundador da
CBS,William Paley, que secretamente lhe assegurou meios de subsistência até
final da vida. Inspirou um peça teatral, "Show Girl”, as bandas desenhadas
"Dixie Dugan”, de John Striebel, e "Valentina", do italiano
Guido Crepax. A banda Orchestral Manoeuvres in the Dark, no álbum “Sugar Tax”,
dedicou-lhe, em 1991, o tema "Pandora's Box". Em 1998, Munro Leely roda um
documentário, “Looking for Lulu”, que lhe é consagrado, com locução de Shirley MacLaine. Em 2000, o grupo francês de
rock Lady Godiva lança o álbum “Louise Brooks Avenue”. Louise Brooks inspirou
igualmente o perfume “Loulou”, de Cacharel.
Filmografia
Como actriz / filmes mudos: 1925: The Street of Forgotten
Men (Vidas Perdidas) de Herbert Brenon; 1926: The American Venus (A Vénus
Americana), de Frank Tuttle; Love 'Em
and Leave 'Em (Amá-las... e Deixá-las), de Frank Tuttle; A Social Celebrity
(Disfrutando a Alta Sociedade), de
Malcolm St. Clair; It's the Old Army Game, de A. Edward Sutherland; The Show
Off, de Malcolm St. Clair; Just Another Blonde, de Alfred Santell; 1927:
Evening Clothes (De Casaca e Luva Branca), de Luther Reed; Rolled Stockings
(Tesouros da Juventude), de Richard Rosson; Now We're in the Air (Recrutas
Aviadores), de Frank R. Strayer; The City Gone Wild (A Cidade Ruidosa), de
James Cruze; 1928: A Girl in Every Port (Uma Rapariga em Cada Porto), de Howard
Hawks; Beggars of Life (Mendigos da Vida), de William A. Wellman; 1929: Die
Büchse der Pandora (A Boceta de Pandora), de Georg Wilhelm Pabst Das Tagebuch
einer Verlorenen, de Georg Wilhelm Pabst;
Como actriz / filmes sonoros: 1929: The Canary Murder Case (O Drama de uma Noite), de
Malcolm St. Clair e Frank Tuttle; 1930: Prix de Beauté (Prémio de Beleza), de
Augusto Genina; 1931: It Pays to Advertise, de Frank Tuttle; God's Gift to
Women, de Michael Curtiz; Windy Riley Goes Hollywood, de Roscoe 'Fatty'
Arbuckle (curta-metragem); Who's Who in the Zoo, de Babe Stafford
(curta-metragem); 1936: Hollywood Boulevard, de Robert Florey; Empty Saddles,
de Lesley Selander; 1937: When You're in Love (Prelúdio de Amor), de Robert
Riskin e Harry Lachman (planos suprimidos); King of Gamblers, de Robert Florey
(planos suprimidos); 1938: Overland Stage Raiders, de George Sherman.
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