sábado, 28 de fevereiro de 2015

DIA 10 DE MARÇO DE 2015


A BOCETA DE PANDORA (1929)

Frank Wedekind, célebre dramaturgo alemão, escreveu, entre outras, duas peças que servem de base ao filme de Pabst, “Erdgeist” (O Espírito da Terra, 1895) e “Die Büchse der Pandora” (A Boceta de Pandora, 1902). Georg Wilhelm Pabst, Joseph Fleisler e Ladislaus Vajda adaptam os
dramas a cinema, com resultado excepcional. Absolutamente inusitado para a época, social e sexualmente revolucionário no seu tempo e ainda hoje perturbante. Um dos mais fulgurantes e provocadores retratos de mulher de toda a história do cinema. Louise Brooks era até então uma pouco conhecida e apreciada actriz norte-americana que aceitou viajar até à Alemanha de finais dos loucos anos 20 para protagonizar “Die Büchse der Pandora”. Depois desta experiência tornou-se num mito, numa personalidade para sempre inigualável na História do Cinema Mundial.
Curioso será referir que Frank Wedekind, o autor das peças de teatro, deverá ter-se inspirado na vida de Lou Andréas-Salomé, escritora nascida russa, que viveu sobretudo na Alemanha, mas era um boémia sedutora que foi dizimando corações ao longo da sua existência, desde Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche, Rainer Maria Rilke, Paul Rée, até ao próprio Wedekind, entre muitos outros, desconhecendo-se, porém, se em muitas dessas relações amorosas imperou o platonismo ou a satisfação sexual. Mas a sua história e a natureza dos seus escritos, entre a ficção, o ensaio e a poesia, todos de qualidade e originalidade indiscutíveis, fizeram dela uma bandeira do feminismo e da “humanização da mulher” (título de uma das suas obras),  da libertação da mulher dos preconceitos e formalismos habituais na época. Parece que o seu encontro com Frank Wedekind foi de molde a este a recordar como uma visão demoníaca da mulher, de tal forma que a identificou com a caixa de Pandora que, uma vez aberta, liberta todos os vícios e pecados do mundo.


Lou Andréas-Salomé era uma mulher livre, sensual, provocadora, possivelmente destrutiva para muitos que dela se aproximaram, e será este o modelo de Lulu, que Georg Willem Pabst imaginou igualmente para protagonista do seu filme. Mas quem surgiu como primeira escolha para interpretar este papel foi Marlène Dietrich (que curiosamente, no ano seguinte, seria “O Anjo Azul” num filme de Sternberg que apresenta muitas semelhanças com “A Boceta de Pandora”). Marlène, porém, levantou algumas objecções e Pabst decidiu-se por uma jovem norte-americana, não muito conhecida, que ele “descobrira” ao assistir a um filme de Howard Hawks, “A Girl in Every Port”, onde ela tinha um papel secundário ainda, mas certamente muito persuasivo.
Em finais da década de 20, Georg Willem Pabst era já um cineasta conceituado, autor de obras como “Rua Sem Sol” (que lança Greta Garbo, ao lado de Asta Nielson), “O Estranho Caso do Professor Matias”, “Uma Mulher na Noite” ou “O Amor de Joana Ney”. O seu cinema interliga habilmente a herança expressionista, com o realismo do Kammerspielfilm, o que é bem visível em “Die Büchse der Pandora”, onde o intimismo realista da primeira hora, passada nos ambientes da alta burguesia alemã, contrasta com os resquícios de expressionismo das cenas no interior do barco francês, onde são permitidos todos os vícios, e sobretudo com toda a sequência final passada nas nebulosas ruas e vielas londrinas.
Lulu (Louise Brooks) encontra-se, no início de “Die Büchse der Pandora”,  com o seu amante, Dr. Peter Schön (Fritz Kortner), um magnate, que anuncia que a vai deixar porque tem marcado casamento com a filha de um ministro. Lulu não se deixa intimidar: “Se te queres libertar de mim, tens de me matar”. Entretanto, escondido no apartamento de Lulu, encontra-se Schigolch (Carl Goetz), que ela apresenta nesta circunstância como seu “velho amigo" (será depois apresentado como “pai”, “mecenas” ou “patrão”, transformando-se numa personagem híbrida e misteriosa que tão depressa é confidente ou apoio, como instigador de prostituição ou batoteiro ao jogo). 


Peter Schön tem um filho, Alwa (Francis Lederer), que se prepara para montar um espectáculo teatral, entre a revista e o music-hall, e que contrata Lulu, por quem se encontra igualmente apaixonado. A relação de Schön com Lulu é descoberta pela noiva, que anula o casamento, acabando Schön por casar com Lulu. Mas logo no dia do enlace, Lulu desaparece de forma misteriosa da festa da boda, sendo encontrada por Schön no quarto com Schigolch e Rodrigo, um trapezista (Krafft-Raschig). Uma troca de acusações mais violenta, um revólver, um disparo e Schön cai fulminado. No julgamento que se segue, o juiz culpa Lulu, considera que ela abriu a “boceta de Pandora” que liberta todos os males e condena-a a cinco anos de prisão. Um incêndio no tribunal acaba por favorecer a fuga da ré, que vamos descobrir, tempos depois, na companhia de Alwa,  Schigolch e Rodrigo, a bordo de um iate francês, por entre o fumo do tabaco, os vapores do álcool e as cartas de jogar que arruínam progressivamente Alwa e comparsas. Entre estes, a condessa Anna Geschwitz (Alice Roberts), uma lésbica assumida, que ama Lulu e por quem aceita ser seduzida por Rodrigo, como forma de pagar dívidas antigas. Uma rusga da polícia leva à debandada, mas o corpo assassinado de Rodrigo permanece.
Lulu, Alwa e Schigolch surgem agora em Londres, nas vielas mais populares, por entre o nevoeiro que traz consigo Jack, o estripador (Gustav Diessl). E a morte. Alwa é apenas uma silhueta na noite.
Lulu mulher diabólica? De certa forma é ela que abre a caixa donde se soltam os pecados e os vícios. Mas Lulu é igualmente o rosto de uma certa inocência, a liberdade de um comportamento que, dir-se-ia, desconhece a diferença entre o Bem e o Mal, que se move pelo prazer do momento, que ignora moral e regras de conduta.
O filme é uma descida aos infernos, uma viagem pelo interior da noite, passando por uma via sacra de tormentos e vícios. Terá sido a primeira vez que o cinema apresentou a figura de uma lésbica, sem subterfúgios. Cremos igualmente que raras vezes o cinema terá ostentado um tal catálogo de licenciosidades e pecados, crimes e vícios. Schön, Alwa, Schigolch, Rodrigo e Anna Geschwitz, através dos seus contactos com Lulu, percorrem um caminho de perdição que oferece uma panorâmica implacável da decadente sociedade alemã de finais dos anos 20, afinal a comunidade que se aprestava a incentivar ou aceitar a ascensão de Hitler e do nacional-socialismo ao poder. Este era o “ovo da serpente” que se preparava para gerar o monstro.
O filme é admirável na construção de ambientes e personagens, com sequências absolutamente inesquecíveis, desde a  cena inicial entre Lulu e Schon, passando pelo casamento de ambos, a sugestão da morte do magnate, o julgamento de Lulu, as posteriores imagens de jogo, ou o encontro entre Lulu e Jack, o estripador, onde de novo a utilização da elipse é brilhantemente utilizada por Pabst.  A fotografia de Günther Krampf, nas suas diversas modelações, e a direcção artística de Andrej Andrejew e Gottlieb Hesch, na criação dos cenários, são elementos vitais para a criação desta obra-prima da cinematografia germânica.


A BOCETA DE PANDORA
Título original: Die Büchse der Pandora
Realização: Georg Wilhelm Pabst (Alemanha, 1929); Argumento: Ladislaus Vajda, Joseph Fleisler, Georg Wilhelm Pabst, segundo peças de teatro de Frank Wedekind ("Erdgeist" e "Die Büchse der Pandora"); Produção: Heinz Landsmann, Seymour Nebenzal; Música: Stuart Oderman (versão 1986), Peer Raben (versão 1997), William P. Perry; Fotografia (p/b): Günther Krampf; Montagem: Joseph Fleisler; Direcção artística: Andrej Andrejew, Gottlieb Hesch, Ernö Metzner; Guarda-roupa:  Gottlieb Hesch; Direcção de Produção: Georg C. Horetsky; Assistentes de realização: Marc Sorkin, Paul Falkenberg; Departamento de arte: Marcel Tuszkay; Efeitos visuais: Andrei Dimitriu, Tobias Wiedmer (restauro); Companhia de produção: Nero-Film AG; Intérpretes: Louise Brooks (Lulu), Fritz Kortner (Dr. Ludwig Schön), Francis Lederer (Alwa Schön), Carl Goetz (Schigolch), Krafft-Raschig (Rodrigo Quast), Alice Roberts Condessa Anna Geschwitz), Daisy D'Ora  (Charlotte Marie Adelaide), Gustav Diessl (Jack, the Ripper), Michael von Newlinsky, Sig Arno, etc. Duração: 131 minutos; Distribuição em Portugal: Divisa Home Video (DVD); Cópia DVD: Second Sight Films (versão alemã, com legendas em inglês); Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 7 de Abril de 1930.


LOUISE BROOKS (1906-1985)
Em 1955, aquando da exposição “60 Anos de Cinema” realizada no Museu de Arte Moderna, em Paris, na frontaria do prédio, via-se um cartaz de  Louise Brooks, o que suscitou alguma perplexidade nalguma imprensa. O director da Cinematèque Française, Henri Langlois, personalidade de enorme prestígio no meio, e organizador da exposição foi questionado: Porquê Louise Brooks para figurar como símbolo, e não, por exemplo, Greta Garbo ou Marlene Dietrich, muito mais populares? Henri Langlois limitou-se a dizer: "Não existe Garbo. Não existe Dietrich. Existe apenas Louise Brooks".
Mary Louise Brooks nasceu a 14 de Novembro de 1906, em Cherryvale, Kansas, EUA, e veio a falecer a 8 de Agosto de 1985, em Rochester, Nova Iorque, EUA, vítima de ataque cardíaco. Filha de Leonard Porter Brooks, advogado, e de Myra Rude, aos quatro anos já actuava no palco de sua cidade. Os pais iniciaram-na no gosto pela música, a literatura e a arte, mas mostraram-se bastante ausentes. Consta que terá sido abusada por um vizinho quando tinha cinco anos. Muito jovem terá sido atraída para a dança, aparecendo nos Denishawn Dancers, depois nos George White's Scandals finalmente no Ziegfeld Follies, onde atinge honras de primeira figura, mas seria no cinema que a sua personalidade e arte explodiriam. Aos 15 ou 16 anos saiu de casa. Em 1925, aparece em 1925 “The Street of Forgotten Men” (Vidas Perdidas), de Herbert Brenon, não surgindo sequer creditada a sua colaboração. Seguem-se um conjunto de filmes sem grande significado, até que, em 1929, um dos mais importantes cineastas alemães, Georg Wilhelm Pabst, a convida a interpretar a personagem de Lulu, em “A Boceta de Pandora”, filme e personagem que ficarão para sempre associados a si, criando-lhe uma reputação internacional invulgar. O filme não foi unanimemente acolhido na época, suscitou violentas críticas, sobretudo em função dos ambientes viciosos, de grande decadência moral, que ostentava, mas lentamente criou a lendária aureola de um cult movie.
Curiosamente, não se sentia atraída por Hollywood e pela sua vida superficial e mundana. Mulher de uma beleza invulgar, com um corte de cabelo curto e liso, de franja, que se tornaria moda nesse tempo (por cá tivemos a nossa Beatriz Costa a importar o conceito), Louise Brooks tornou-se sobretudo notada pela sua rebeldia e provocação, impondo-se contra a submissão dos actores aos grandes produtores e estúdios, discutindo com realizadores, desafiando preconceitos e convenções, mantendo uma vida amorosa tumultuosa, onde os “casos” se sucediam (um dos mais versados foi com Charlie Chaplin). A sua passagem pelos estúdios alemães, a convide de Pabst, marca o apogeu da sua carreira. Não foi muito feliz depois do aparecimento do sonoro, manteve-se activa até 1938 (o seu último trabalho foi “Overland Stage Raiders”, de George Sherman), após o que se retirou. 
Consta que uma das razões para o seu apagamento terá sido o facto de se ter recusado a dobrar-se a si própria no filme “Canary Murder Case”, produzido sem som e lançado como sonoro. Os produtores, furiosos com a recusa, espalharam o boato de que ela tinha uma voz horrível e por isso não tinha querido dobrar o filme. Foi o bastante para ser abandonada pelos estúdios. Afastada do cinema, ganha a vida de várias formas, escreve crónicas, rubricas na rádio, é vendedora num loja, a Sak's Fifth Avenue, e, em 1948, começa a escrever sua biografia,“Naked On My Goat”, que destrói uma vez terminada. Justifica o acto: “Ao escrever a história de uma vida, acho que o leitor não pode entender a personalidade e as acções de uma pessoa ao menos que sejam explicitados os amores, os ódios, e os conflitos sexuais dessa pessoa. Não estou disposta a escrever a verdade sexual que tornaria minha vida digna de ser lida". Mas continua a escrever e mais tarde assina um best seller: “Lulu in Hollywood”. No final da vida sofria de artrite e faleceu no dia 8 de Agosto de 1985, aos 78 anos de idade, em Nova Iorque. Foi encontrada já sem vida no seu apartamento, vítima de ataque cardíaco, e os seus restos mortais foram depositados em Rochester.
Casada com o realizador A. Edward Sutherland (1926 - 1928), e posteriormente com Deering Davis (1933 - 1938), divorciando-se de ambos. Foi amante do fundador da CBS,William Paley, que secretamente lhe assegurou meios de subsistência até final da vida. Inspirou um peça teatral, "Show Girl”, as bandas desenhadas "Dixie Dugan”, de John Striebel, e "Valentina", do italiano Guido Crepax. A banda Orchestral Manoeuvres in the Dark, no álbum “Sugar Tax”, dedicou-lhe, em 1991, o tema "Pandora's Box". Em 1998, Munro Leely roda um documentário, “Looking for Lulu”, que lhe é consagrado, com locução de  Shirley MacLaine. Em 2000, o grupo francês de rock Lady Godiva lança o álbum “Louise Brooks Avenue”. Louise Brooks inspirou igualmente o perfume “Loulou”, de Cacharel.  


Filmografia
Como actriz / filmes mudos: 1925: The Street of Forgotten Men (Vidas Perdidas) de Herbert Brenon; 1926: The American Venus (A Vénus Americana),  de Frank Tuttle; Love 'Em and Leave 'Em (Amá-las... e Deixá-las), de Frank Tuttle; A Social Celebrity (Disfrutando a Alta Sociedade),  de Malcolm St. Clair; It's the Old Army Game, de A. Edward Sutherland; The Show Off, de Malcolm St. Clair; Just Another Blonde, de Alfred Santell; 1927: Evening Clothes (De Casaca e Luva Branca), de Luther Reed; Rolled Stockings (Tesouros da Juventude), de Richard Rosson; Now We're in the Air (Recrutas Aviadores), de Frank R. Strayer; The City Gone Wild (A Cidade Ruidosa), de James Cruze; 1928: A Girl in Every Port (Uma Rapariga em Cada Porto), de Howard Hawks; Beggars of Life (Mendigos da Vida), de William A. Wellman; 1929: Die Büchse der Pandora (A Boceta de Pandora), de Georg Wilhelm Pabst Das Tagebuch einer Verlorenen, de Georg Wilhelm Pabst;

Como actriz / filmes sonoros: 1929: The Canary Murder Case (O Drama de uma Noite), de Malcolm St. Clair e Frank Tuttle; 1930: Prix de Beauté (Prémio de Beleza), de Augusto Genina; 1931: It Pays to Advertise, de Frank Tuttle; God's Gift to Women, de Michael Curtiz; Windy Riley Goes Hollywood, de Roscoe 'Fatty' Arbuckle (curta-metragem); Who's Who in the Zoo, de Babe Stafford (curta-metragem); 1936: Hollywood Boulevard, de Robert Florey; Empty Saddles, de Lesley Selander; 1937: When You're in Love (Prelúdio de Amor), de Robert Riskin e Harry Lachman (planos suprimidos); King of Gamblers, de Robert Florey (planos suprimidos); 1938: Overland Stage Raiders, de George Sherman.

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