SYLVIA
SCARLETT (1935)
Katharine Hepburn teve uma estreia fulgurante no
teatro e no cinema e, em meia dúzia de anos, tornou-se numa das mais
apaixonantes vedetas do céu estrelado de Hollywood (curiosamente nunca habitou
longas temporadas nem em Hollywood, nem sequer em Nova Iorque, ela era dada ao
Connecticut, onde nasceu e haveria de falecer). Mas desde muito nova que
gostava de se vestir com roupa masculina, era mesmo considerada uma
maria-rapaz, cortava o cabelo rente e respondia pelo nome de Jimmy. Filha de
uma sufragista, ficou-lhe da herança materna esse gosto pela independência,
essa necessidade de emancipação e de rebeldia de que deu sobejas provas ao
longo de toda a sua vida artística, criando personagens inesquecíveis e
invulgares na cinematografia norte-americana dos anos 30 em diante. Esse seu
gosto pela androgenia não lhe retirava, contudo, um lado feminino muito sedutor
para quem o soubesse descobrir para lá da aparente arrogância que muitas vezes
aparentava.
“Sylvya Scarlet”, filme de 1935, é um dos seus
trabalhos de início de carreira (“A Bill of Divorcement”, de George Cukor, é a
sua estreia no ecrã e data de 1932), mas surge já como protagonista
indiscutível, ao lado de Gary Grant, com quem contracenou por quatro vezes, sob
a direcção de George Cukor, que a lançou no cinema e com quem colaborou em dez
títulos. Acrescente-se que, mulher de fidelidades, iniciou em 1942 uma relação
profissional e amorosa com Spencer Tracy, que só iria terminar 25 anos depois,
com a morte do actor, depois de ambos terem aparecido juntos em nove filmes.
Mas “Sylvia Scarlet” merece referência por diversos aspectos e um deles é
precisamente por ser uma obra onde Katharine Hepburn dá largas à sua
androgenia, interpretando o papel de uma jovem francesa que passa por rapaz,
vestindo-se e agindo enquanto tal com certa desenvoltura.
Sylvia vive em Marselha com o pai, viúvo e grande
apreciador de jogos, que o arruinaram e o levam a ter de fugir para Inglaterra.
Por forma a passarem despercebidos na sua viagem para a Grã-Bretanha, Sylvia
muda de género e passa a chamar-se Sylvestre (diga-se que esta mudança de
género é um dos aspectos desconcertantes desta obra, pois não se percebe muito
bem quais as razões para esta decisão – não se torna mais credível por isso,
muito pelo contrário, como se deve calcular). Estamos o domínio da comédia onde
o disfarce predispõe a situações equívocas para serem exploradas futuramente.
“Sylvya Scarlet” é, nesse particular, muito sugestivo e algo inesperado na
época. O código Hays, que começou a ser aplicado em 1934, ainda não tinha aperfeiçoado
o seu controlo sobre a indústria cinematográfica, senão muito dificilmente
concederia licença para produção de um título tão subversivo em matéria sexual.
Claro que Cukor era já mestre na arte das subtilezas, mas o clima de
ambiguidade sexual em que decorre todo o filme é de molde a perturbar as boas
consciências.
Na viagem para Inglaterra, pai, Henry Scarlett
(Edmund Gwenn) e filha/filho, Sylvia/Sylvester (Katharine Hepburn) são
abordados por um aldrabão profissional, Jimmy Monkley (Cary Grant), que os
denuncia como contrabandistas, para ele próprio passar incólume pela alfândega.
Mais tarde reencontram-se, organizam-se em grupo de larápios mal sucedido,
depois em bando de comediantes em tournée pela província, igualmente sem grande
sorte. Pelo meio da jornada, Sylvia e Sylvester vão alternando situações
dúbias, até se recompor a ordem natural das coisas e tudo terminar num “happy
end” formal.
A comédia não está à altura de “Casamento
Escandaloso” (The Philadelphia Story) ou “Duas Feras” (Bringing Up Baby), só
para falar de duas outras obras interpretadas na época por Katharine Hepburn e
Cary Grant, mas ostenta o sabor de uma certa perversão subliminar, inscrita num
contexto de intriga aparentemente ingénua. O contraste é feliz, um pouco bizarro
é certo, e as interpretações de todo o elenco valem mesmo a pena. Katharine
Hepburn, sobretudo ela, é magnífica nessa figura de desconcertante duplicidade,
e se não é um dos seus melhores filmes, será seguramente um dos seus trabalhos
mais representativos da sua personalidade.
SYLVIA SCARLETT
Título original: Sylvia Scarlett
Realização: George Cukor (EUA,
1935); Argumento: Gladys Unger, John Collier, Mortimer Offner, segundo romance
de Compton MacKenzie; Produção: Pandro S. Berman; Música: Roy Webb; Fotografia
(p/b): Joseph H. August; Montagem: Jane
Loring; Direcção artística: Van Nest Polglase;
Guarda-roupa: Muriel King,
Bernard Newman; Maquilhagem: Mel Berns; Assistentes de realização: Kenneth
Holmes, Argyle Nelson; Departamento de arte: Sturges Carne; Som: George D.
Ellis; Efeitos especiais: Harry Redmond Sr.; Companhias de produção: Radio
Pictures; Intérpretes: Katharine
Hepburn (Sylvia Scarlett / Sylvester), Cary Grant (Jimmy Monkley), Brian Aherne
(Michael Fane), Edmund Gwenn (Henry Scarlett), Robert Adair, Bunny Beatty, May
Beatty, Daisy Belmore, Carmen Beretta, Madam Borget, Thomas Braidon, Elsa
Buchanan, Colin Campbell, Patricia Caron, Harold Cheevers, E.E. Clive, Edward
Cooper, Adrienne D'Ambricourt, Kay Deslys, Nola Dolberg, Robert Hale, Alec
Harford, Peter Hobbes, etc. Duração:
95 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Classificação
etária: M/ 12 anos.
KATHARINE HEPBURN (1907 - 2003)
“Escrevam o que
quiserem sobre mim, mas nunca a verdade. Não, isso, não”, dizia ela, mas não a
podemos satisfazer, neste caso. Katharine Houghton Hepburn nasceu a 12 de Maio
de 1907, em Hartford, Connecticut, EUA, e faleceu aos 96 anos, a 29 de Junho de
2003, em Old Saybrook, Connecticut, EUA. Era de origem inglesa e escocesa,
filha de Thomas Hepburn, médico, e de Katharine Houghton, sufragista. De
espírito independente e de vontade indómita, rapidamente foi considerada uma
líder do feminismo. Casou uma única vez com Ludlow Ogden Smith, um rico
empresário da Nova Inglaterra, mas foi um casamento de curta duração (1928 -
1934). Manteve uma relação com o multimilionário Howard Hughes (1937-1939).
Muito maior e mais intensa foi a sua relação, nos filmes (nove filmes em comum)
e na vida real, com Spencer Tracy, que se prolongou por 25 anos, só terminando
com a morte do actor (1967). Iniciou a carreira de actriz no teatro, no final
da década de 20 e, em 1931, teve o seu primeiro sucesso em "The Warrior's
Husband", sendo convidada a partir para Hollywood. O seu triunfo no cinema
foi fulgurante, mas nunca abandonou o teatro e, mais tarde, seria igualmente
seduzida pela televisão.
No cinema, as
suas interpretações multiplicam-se por figuras inesquecíveis de mulheres
arrojadas e de fibra temperamental, como em “Sylvia Scarlett”, “Alice Adams”,
“Bringing Up Baby”, “The Philadelphia Story”, “Woman of the Year”, “Adam's
Rib”, “The African Queen”, “Pat and Mike”, “Summertime”, “The Rainmaker”,
“Suddenly, Last Summer”, “Long Day's Journey into Night”, “Guess Who's Coming
to Dinner”, “The Lion in Winter”, “A Delicate Balance”, “Rooster Cogburn” ou
“On Golden Pond”, sendo nomeada para o Oscar de Melhor Actriz, sempre como
protagonista, por doze vezes, tendo ganho quarto estatuetas pelos seus
desempenhos em “Morning Glory” (1934), “Guess Who's Coming to Dinner” (1968),
“The Lion in the Winter” (1969) e “On Golden Pond” (1982).
Em televisão,
ganhou um Emmy em 1975 pelo seu papel em “Love Among the Ruins”, e foi nomeada
para outros quatro e também para dois Tonys. Em 1979, o “Screen Actors Guild”
atribuiu-lhe o “Life Achievement Award”, e em 1962 tinha sido considerada a
melhor actriz no Festival de Cannes, pelo seu trabalho em “Long Day's Journey
into Night”. Conquistou três BAFTA: “The Lion in the Winter”,
“Guess Who's Coming to Dinner” e “On Golden Pond”. Já em 1934,
arrebatou o prémio de Melhor Actriz, em “Little Women”, no Festival de Veneza.
Uma carreira recheada de honrarias para aquela que muitos consideram a maior
actriz de sempre: em 1999, o “American Film Institute” considerou-a, através de
uma sondagem, a maior actriz de todos os tempos, encabeçando uma lista de 25
notáveis. Por isso era conhecida por “The Great Kate” ou “First Lady of
Cinema”.
Filmografia
1932: A Bill of
Divorcement (Vítimas do Divórcio), de George Cukor; 1933: Little Women (As
Quatro Irmãs), de George Cukor, Morning Glory (Glória de um Dia), de Lowell
Sherman; Christopher Strong (O Que Faz o Amor), de Dorothy Arzner; 1934: The
Little Minister, de Richard Wallace; Spitfire, de John Cromwell; 1935: Break of
Hearts (Corações Desfeitos), de Philip Moeller; Sylvia Scarlett (Sylvia
Scarlett), de George Cukor; Alice Adams, de George Stevens; 1936: A Woman
Rebels (Revoltada), de Mark Sandrich; Mary of Scotland (Maria Stuart, Raínha da
Escócia), de John Ford; 1937: Stage Door (A Porta das Estrelas), de Gregory La
Cava; Quality Street (Bairro Elegante), de George Stevens; 1938: Holiday (A
Irmã da Minha Noiva), de George Cukor; Bringing Up Baby (Duas Feras), de Howard
Hakws; 1940: The Philadelphia Story (Casamento Escandaloso), de George Cukor;
1942: Keeper of the Flame (A Chama Eterna), de George Cukor; Woman of the Year
(A Primeira Dama ou A Mulher do Ano), de George Stevens; 1943: Stage Door
Canteen (Chuva de Estrelas), de Frank Borzage; 1944: Dragon Seed (O Filho do
Dragão, de Harold S. Bucquet e Jack Conway; 1945: Without Love (Sem Amor), de
Harold S. Bucquet; 1946: Undercurrent (Estranha Revelação), de Vincent
Minnnelli; 1947: Song of Love (Sonata de Amor), de Clarence Brown; Sea of Grass
(Terra de Ambições), de Elia Kazan; 1948: State of the Union (Um Filho do
Povo), de Frank Capra; 1949: Adam's Rib (A Costela de Adão), de George Cukor;
1951: The African Queen (A Raínha Africana), de John Huston; 1952: Pat and Mike
(A Mulher Absoluta), de George Cukor; 1955: Summertime (Loucura em Veneza), de David
Lean; 1956: The Iron Petticoat (Um Americano em Moscovo), de Ralph Thomas; The
Rainmaker (O Homem Que Fazia Chover), de Joseph Anthony;
1957: Desk Set (A Mulher Que Sabe Tudo), de Walter Lang; 1959: Suddenly, Last
Summer (Bruscamente no Verão Passado), de Joseph L. Mankiewicz; 1962: Long
Day's Journey into Night (Longa Jornada para a Noite), de Sidney Lumet; 1967:
Guess Who's Coming to Dinner (Adivinhe Quem Vem Jantar), de Stanley Kramer;
1968: The Lion in Winter (O Leão no Inverno), de Anthony Harvey; 1969: The
Madwoman of Chaillot (A Louca de Chaillot), de Brian Forbes; 1971: The Trojan
Women, de Michael Cacoyannis; 1973: A Delicate Balance (Equilíbrio Instável),
de Tony Richardson; 1973: The Glass Menagerie, de Anthony Harvey (TV); 1975:
Rooster Cogburn (O Sheriff), de Stuart Millar; Love Among the Ruins (Amor entre
Ruínas), de George Cukor (TV); 1978: Olly Olly Oxen Free, de Richard A. Colla;
1979: The Corn Is Green, de George Cukor (TV); 1981: On Golden Pond (A Casa do
Lago), de Mark Rydell; 1984: The Ultimate Solution of Grace Quigley (Morte por
Encomenda), de Anthony Harvey; 1986: Mrs. Delafield Wants to Marry, de George
Schaefer (TV); 1988: Laura Lansing Slept Here, de George Schaefer (TV); 1992:
The Man Upstairs, de George Schaefer (TV); 1993: Katharine Hepburn: All About
Me, documentário realizado pela própria; 1994: One Christmas, de Tony Bill
(TV); 1994: Love Affair (O Amor da Minha Vida), de Glenn Gordon Caron; 1994:
This Can't Be Love (Será Isto o Amor?), de Anthony Harvey (TV).
Por mais que Hollywood fomentasse o glamour, noto que as atrizes mais poderosas não eram as mais bonitas (isso demonstra que o talento, quando é notório, ultrapassa a beleza física): Katherine Hepburn, Bette Davis, Judy Garland e Barbara Stanwick são provas disso. Adoro "As duas feras" onde Hepburn dá vida à mulher mais "louca" do cinema
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