sábado, 28 de fevereiro de 2015

24 DE MARÇO DE 2015


SYLVIA SCARLETT (1935)

Katharine Hepburn teve uma estreia fulgurante no teatro e no cinema e, em meia dúzia de anos, tornou-se numa das mais apaixonantes vedetas do céu estrelado de Hollywood (curiosamente nunca habitou longas temporadas nem em Hollywood, nem sequer em Nova Iorque, ela era dada ao Connecticut, onde nasceu e haveria de falecer). Mas desde muito nova que gostava de se vestir com roupa masculina, era mesmo considerada uma maria-rapaz, cortava o cabelo rente e respondia pelo nome de Jimmy. Filha de uma sufragista, ficou-lhe da herança materna esse gosto pela independência, essa necessidade de emancipação e de rebeldia de que deu sobejas provas ao longo de toda a sua vida artística, criando personagens inesquecíveis e invulgares na cinematografia norte-americana dos anos 30 em diante. Esse seu gosto pela androgenia não lhe retirava, contudo, um lado feminino muito sedutor para quem o soubesse descobrir para lá da aparente arrogância que muitas vezes aparentava.
“Sylvya Scarlet”, filme de 1935, é um dos seus trabalhos de início de carreira (“A Bill of Divorcement”, de George Cukor, é a sua estreia no ecrã e data de 1932), mas surge já como protagonista indiscutível, ao lado de Gary Grant, com quem contracenou por quatro vezes, sob a direcção de George Cukor, que a lançou no cinema e com quem colaborou em dez títulos. Acrescente-se que, mulher de fidelidades, iniciou em 1942 uma relação profissional e amorosa com Spencer Tracy, que só iria terminar 25 anos depois, com a morte do actor, depois de ambos terem aparecido juntos em nove filmes. Mas “Sylvia Scarlet” merece referência por diversos aspectos e um deles é precisamente por ser uma obra onde Katharine Hepburn dá largas à sua androgenia, interpretando o papel de uma jovem francesa que passa por rapaz, vestindo-se e agindo enquanto tal com certa desenvoltura.


Sylvia vive em Marselha com o pai, viúvo e grande apreciador de jogos, que o arruinaram e o levam a ter de fugir para Inglaterra. Por forma a passarem despercebidos na sua viagem para a Grã-Bretanha, Sylvia muda de género e passa a chamar-se Sylvestre (diga-se que esta mudança de género é um dos aspectos desconcertantes desta obra, pois não se percebe muito bem quais as razões para esta decisão – não se torna mais credível por isso, muito pelo contrário, como se deve calcular). Estamos o domínio da comédia onde o disfarce predispõe a situações equívocas para serem exploradas futuramente. “Sylvya Scarlet” é, nesse particular, muito sugestivo e algo inesperado na época. O código Hays, que começou a ser aplicado em 1934, ainda não tinha aperfeiçoado o seu controlo sobre a indústria cinematográfica, senão muito dificilmente concederia licença para produção de um título tão subversivo em matéria sexual. Claro que Cukor era já mestre na arte das subtilezas, mas o clima de ambiguidade sexual em que decorre todo o filme é de molde a perturbar as boas consciências.
Na viagem para Inglaterra, pai, Henry Scarlett (Edmund Gwenn) e filha/filho, Sylvia/Sylvester (Katharine Hepburn) são abordados por um aldrabão profissional, Jimmy Monkley (Cary Grant), que os denuncia como contrabandistas, para ele próprio passar incólume pela alfândega. Mais tarde reencontram-se, organizam-se em grupo de larápios mal sucedido, depois em bando de comediantes em tournée pela província, igualmente sem grande sorte. Pelo meio da jornada, Sylvia e Sylvester vão alternando situações dúbias, até se recompor a ordem natural das coisas e tudo terminar num “happy end” formal.
A comédia não está à altura de “Casamento Escandaloso” (The Philadelphia Story) ou “Duas Feras” (Bringing Up Baby), só para falar de duas outras obras interpretadas na época por Katharine Hepburn e Cary Grant, mas ostenta o sabor de uma certa perversão subliminar, inscrita num contexto de intriga aparentemente ingénua. O contraste é feliz, um pouco bizarro é certo, e as interpretações de todo o elenco valem mesmo a pena. Katharine Hepburn, sobretudo ela, é magnífica nessa figura de desconcertante duplicidade, e se não é um dos seus melhores filmes, será seguramente um dos seus trabalhos mais representativos da sua personalidade. 


SYLVIA SCARLETT
Título original: Sylvia Scarlett
Realização: George Cukor (EUA, 1935); Argumento: Gladys Unger, John Collier, Mortimer Offner, segundo romance de Compton MacKenzie; Produção: Pandro S. Berman; Música: Roy Webb; Fotografia (p/b):  Joseph H. August; Montagem: Jane Loring; Direcção artística: Van Nest Polglase;  Guarda-roupa:  Muriel King, Bernard Newman; Maquilhagem: Mel Berns; Assistentes de realização: Kenneth Holmes, Argyle Nelson; Departamento de arte: Sturges Carne; Som: George D. Ellis; Efeitos especiais: Harry Redmond Sr.; Companhias de produção: Radio Pictures; Intérpretes: Katharine Hepburn (Sylvia Scarlett / Sylvester), Cary Grant (Jimmy Monkley), Brian Aherne (Michael Fane), Edmund Gwenn (Henry Scarlett), Robert Adair, Bunny Beatty, May Beatty, Daisy Belmore, Carmen Beretta, Madam Borget, Thomas Braidon, Elsa Buchanan, Colin Campbell, Patricia Caron, Harold Cheevers, E.E. Clive, Edward Cooper, Adrienne D'Ambricourt, Kay Deslys, Nola Dolberg, Robert Hale, Alec Harford, Peter Hobbes, etc. Duração: 95 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Classificação etária: M/ 12 anos.


KATHARINE HEPBURN (1907 - 2003)
“Escrevam o que quiserem sobre mim, mas nunca a verdade. Não, isso, não”, dizia ela, mas não a podemos satisfazer, neste caso. Katharine Houghton Hepburn nasceu a 12 de Maio de 1907, em Hartford, Connecticut, EUA, e faleceu aos 96 anos, a 29 de Junho de 2003, em Old Saybrook, Connecticut, EUA. Era de origem inglesa e escocesa, filha de Thomas Hepburn, médico, e de Katharine Houghton, sufragista. De espírito independente e de vontade indómita, rapidamente foi considerada uma líder do feminismo. Casou uma única vez com Ludlow Ogden Smith, um rico empresário da Nova Inglaterra, mas foi um casamento de curta duração (1928 - 1934). Manteve uma relação com o multimilionário Howard Hughes (1937-1939). Muito maior e mais intensa foi a sua relação, nos filmes (nove filmes em comum) e na vida real, com Spencer Tracy, que se prolongou por 25 anos, só terminando com a morte do actor (1967). Iniciou a carreira de actriz no teatro, no final da década de 20 e, em 1931, teve o seu primeiro sucesso em "The Warrior's Husband", sendo convidada a partir para Hollywood. O seu triunfo no cinema foi fulgurante, mas nunca abandonou o teatro e, mais tarde, seria igualmente seduzida pela televisão.


No cinema, as suas interpretações multiplicam-se por figuras inesquecíveis de mulheres arrojadas e de fibra temperamental, como em “Sylvia Scarlett”, “Alice Adams”, “Bringing Up Baby”, “The Philadelphia Story”, “Woman of the Year”, “Adam's Rib”, “The African Queen”, “Pat and Mike”, “Summertime”, “The Rainmaker”, “Suddenly, Last Summer”, “Long Day's Journey into Night”, “Guess Who's Coming to Dinner”, “The Lion in Winter”, “A Delicate Balance”, “Rooster Cogburn” ou “On Golden Pond”, sendo nomeada para o Oscar de Melhor Actriz, sempre como protagonista, por doze vezes, tendo ganho quarto estatuetas pelos seus desempenhos em “Morning Glory” (1934), “Guess Who's Coming to Dinner” (1968), “The Lion in the Winter” (1969) e “On Golden Pond” (1982).
Em televisão, ganhou um Emmy em 1975 pelo seu papel em “Love Among the Ruins”, e foi nomeada para outros quatro e também para dois Tonys. Em 1979, o “Screen Actors Guild” atribuiu-lhe o “Life Achievement Award”, e em 1962 tinha sido considerada a melhor actriz no Festival de Cannes, pelo seu trabalho em “Long Day's Journey into Night”. Conquistou três BAFTA: “The Lion in the Winter”, “Guess Who's Coming to Dinner” e “On Golden Pond”. Já em 1934, arrebatou o prémio de Melhor Actriz, em “Little Women”, no Festival de Veneza. Uma carreira recheada de honrarias para aquela que muitos consideram a maior actriz de sempre: em 1999, o “American Film Institute” considerou-a, através de uma sondagem, a maior actriz de todos os tempos, encabeçando uma lista de 25 notáveis. Por isso era conhecida por “The Great Kate” ou “First Lady of Cinema”.


Filmografia

1932: A Bill of Divorcement (Vítimas do Divórcio), de George Cukor; 1933: Little Women (As Quatro Irmãs), de George Cukor, Morning Glory (Glória de um Dia), de Lowell Sherman; Christopher Strong (O Que Faz o Amor), de Dorothy Arzner; 1934: The Little Minister, de Richard Wallace; Spitfire, de John Cromwell; 1935: Break of Hearts (Corações Desfeitos), de Philip Moeller; Sylvia Scarlett (Sylvia Scarlett), de George Cukor; Alice Adams, de George Stevens; 1936: A Woman Rebels (Revoltada), de Mark Sandrich; Mary of Scotland (Maria Stuart, Raínha da Escócia), de John Ford; 1937: Stage Door (A Porta das Estrelas), de Gregory La Cava; Quality Street (Bairro Elegante), de George Stevens; 1938: Holiday (A Irmã da Minha Noiva), de George Cukor; Bringing Up Baby (Duas Feras), de Howard Hakws; 1940: The Philadelphia Story (Casamento Escandaloso), de George Cukor; 1942: Keeper of the Flame (A Chama Eterna), de George Cukor; Woman of the Year (A Primeira Dama ou A Mulher do Ano), de George Stevens; 1943: Stage Door Canteen (Chuva de Estrelas), de Frank Borzage; 1944: Dragon Seed (O Filho do Dragão, de Harold S. Bucquet e Jack Conway; 1945: Without Love (Sem Amor), de Harold S. Bucquet; 1946: Undercurrent (Estranha Revelação), de Vincent Minnnelli; 1947: Song of Love (Sonata de Amor), de Clarence Brown; Sea of Grass (Terra de Ambições), de Elia Kazan; 1948: State of the Union (Um Filho do Povo), de Frank Capra; 1949: Adam's Rib (A Costela de Adão), de George Cukor; 1951: The African Queen (A Raínha Africana), de John Huston; 1952: Pat and Mike (A Mulher Absoluta), de George Cukor; 1955: Summertime (Loucura em Veneza), de David Lean; 1956: The Iron Petticoat (Um Americano em Moscovo), de Ralph Thomas; The Rainmaker (O Homem Que Fazia Chover), de Joseph Anthony; 1957: Desk Set (A Mulher Que Sabe Tudo), de Walter Lang; 1959: Suddenly, Last Summer (Bruscamente no Verão Passado), de Joseph L. Mankiewicz; 1962: Long Day's Journey into Night (Longa Jornada para a Noite), de Sidney Lumet; 1967: Guess Who's Coming to Dinner (Adivinhe Quem Vem Jantar), de Stanley Kramer; 1968: The Lion in Winter (O Leão no Inverno), de Anthony Harvey; 1969: The Madwoman of Chaillot (A Louca de Chaillot), de Brian Forbes; 1971: The Trojan Women, de Michael Cacoyannis; 1973: A Delicate Balance (Equilíbrio Instável), de Tony Richardson; 1973: The Glass Menagerie, de Anthony Harvey (TV); 1975: Rooster Cogburn (O Sheriff), de Stuart Millar; Love Among the Ruins (Amor entre Ruínas), de George Cukor (TV); 1978: Olly Olly Oxen Free, de Richard A. Colla; 1979: The Corn Is Green, de George Cukor (TV); 1981: On Golden Pond (A Casa do Lago), de Mark Rydell; 1984: The Ultimate Solution of Grace Quigley (Morte por Encomenda), de Anthony Harvey; 1986: Mrs. Delafield Wants to Marry, de George Schaefer (TV); 1988: Laura Lansing Slept Here, de George Schaefer (TV); 1992: The Man Upstairs, de George Schaefer (TV); 1993: Katharine Hepburn: All About Me, documentário realizado pela própria; 1994: One Christmas, de Tony Bill (TV); 1994: Love Affair (O Amor da Minha Vida), de Glenn Gordon Caron; 1994: This Can't Be Love (Será Isto o Amor?), de Anthony Harvey (TV).

1 comentário:

  1. Por mais que Hollywood fomentasse o glamour, noto que as atrizes mais poderosas não eram as mais bonitas (isso demonstra que o talento, quando é notório, ultrapassa a beleza física): Katherine Hepburn, Bette Davis, Judy Garland e Barbara Stanwick são provas disso. Adoro "As duas feras" onde Hepburn dá vida à mulher mais "louca" do cinema

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